Opinião CCP | “A Aquisição de Partes Sociais e o IMT”
12 Jun 2024

Como resulta do preambulo do revogado Código da Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações a tributação das cessões de quotas ou partes sociais que possuam bens imobiliários são passíveis de Sisa e “teve-se em vista, ao tributá-las impedir que os imobiliários das sociedades pudessem ser praticamente adquiridos por qualquer dos sócios sem o pagamento da sisa”.
Trata-se, portanto, de uma medida que visa evitar o domínio sobre imóveis através da aquisição de partes sociais da sociedade detentora desses imóveis.
Para o efeito, assimilou-se à transmissão de propriedade imobiliária:
a) As aquisições de partes sociais;
b) A amortização ou quaisquer outros factos.
Mas apenas e tão só, quando, por consequência de qualquer dos referidos acontecimentos, qualquer sócio ficasse a dispor de mais de 75% do capital social.
O facto gerador, de cuja verificação depende o nascimento da obrigação de imposto, era a “aquisição de partes sociais, a amortização ou quaisquer outros factos”, mas que apenas ocorria quando por força da sua verificação um dos sócios ficasse a dispor de, pelo menos, 75% do capital social.
Tal norma foi integrada no Código do IMT e, apesar da sua longa vigência, não deixa de suscitar dúvidas de aplicação, algumas das quais provocadas pela instabilidade legislativa.
Com efeito, recorda-se que, atualmente, integra o conceito de transmissão de bens imóveis apenas e tão só a “aquisição de partes sociais” (alínea d) do n.º do artigo 2.º do CIMT).
O que, em bom rigor, significa, em termos literais, que “a amortização ou quaisquer outros factos” deixaram de estar assimilados a transmissão de bens imóveis (deixou de haver facto gerador de imposto) e, consequentemente, deixou de haver tributação quando, por via de qualquer dos referidos acontecimentos, qualquer sócio passe a deter uma participação superior a 75% do capital social. O que acontece, por exemplo, com uma amortização com redução de capital, em consequência da qual um dos sócios remanescentes fica com mais de 75% do novo capital social.
Desconhecemos se o legislador se expressou mal involuntariamente e não quis alterar o âmbito de incidência da norma. Certo é, que, literalmente, só a aquisição de partes sociais constitui facto suscetível de desencadear a tributação em IMT.
Mas para além desta dúvida suscitada por recente alteração legislativa, outras vêm persistindo.
É o caso de saber se a constituição de uma sociedade por quotas ou anónima, com entradas dos sócios com participações sociais em sociedades que detêm imóveis, ou a constituição por cisão de outra já existente, e, por via da qual, algum dos sócios fique a dispor de, pelo menos, 75 % do capital social, está ou não abrangida pela referida norma de incidência.
E, na constituição de sociedades, a nova AT não se entende com a antiga DGCI, tendo, aparentemente, posições divergentes.
Ora, como se referiu está em causa uma norma específica anti abuso que tem como finalidade evitar que se adquiram imóveis, sem qualquer sujeição a IMT, por intermédio da aquisição de uma posição significativa numa sociedade (parte social).
O legislador pretendeu, portanto, acautelar a tributação de transmissões de prédios entre partes terceiras, quando são realizadas indiretamente por meio da aquisição de partes sociais em sociedades detentoras desses prédios.
Com efeito, como foi reconhecido no Acórdão do CAAD, de 10.02.2017, no Processo n.º 166/2016-T, estamos perante uma ficção jurídica, com a natureza de cláusula anti abuso:
“Podemos, assim, concluir, sem margem para dúvidas, que o preceito que a Administração Tributária aplicou constitui uma norma de incidência com a natureza de uma ficção jurídica, cuja menos legis é a de uma cláusula anti abuso, ou seja, que visa prevenir a fraude, evasão ou elisão fiscal….o que se visa com esta norma de incidência é evitar a fraude, evasão ou elisão fiscal, mandando tributar situações em que um sócio de uma sociedade em comandita ou por quotas adquire, por via da aquisição de partes sociais, a “quase propriedade” dos imóveis dessa sociedade”.
Estarão, portanto, fora do âmbito de aplicação da norma, as situações em que os imóveis já estão na titularidade de uma pessoa física ou jurídica e, por qualquer negócio jurídico, passou a deter a participação indireta do imóvel através da detenção de uma participação social.
Com efeito, a antiga DGCI esclareceu, ao tempo, na Circular 15/2002, que tal norma não é aplicável à constituição de sociedades, como se transcreve: “2. Aproveita-se a oportunidade para anotar que, se no cato de constituição de uma sociedade que possua bens imóveis, algum dos sócios ficar a dispor de, pelo menos, 75% do seu capital social, não será devida sisa por esse facto; só quando tal sócio vier a adquirir, posteriormente, outra quota ou parte social, é que se verifica ficar sujeito a imposto municipal de sisa, de harmonia com o artigo 2º, §1º, n.º 6º e regra 2ª do §3º do art.º 19º do Código citado” (bold nosso)”.
Ter-se-á pretendido referir que, independentemente de qual o sócio que entrou para a sociedade com bens imóveis e de qual o sócio que, eventualmente, passou a deter mais de 75% do capital social, não há qualquer tributação em IMT, tanto mais que a entrada dos imóveis na sociedade está sujeita a IMT.
Do mesmo modo, e, por maioria de razão, a constituição de uma sociedade, com entradas de participações sociais de sociedades que detêm imóveis, neste contexto, também não está sujeita a IMT, apesar da sociedade constituída passar a deter “indiretamente” os imóveis das sociedades participadas.
Portanto, a norma atinge aquisições derivadas, não se podendo subsumir nela, as aquisições originárias por constituição de uma sociedade.
E, a constituição de uma sociedade não se pode subsumir “nos outros factos”. Neste sentido, Albano Alves Moreia, em anotação ao revogado CIMSISSD, comentava que “os outros factos a que se refere este nº 6 do § 1º, são os do artigo 41º da Lei das sociedades por quotas”.
E esses eram os factos supervenientes à constituição da sociedade que implicavam alteração do pacto social e para a qual era exigível três quartas partes dos votos correspondentes ao capital da sociedade.
Nunca esteve na mente do legislador subsumir a esta norma o caso de entrada de capital numa sociedade a constituir, entrada essa consubstanciada por uma participação numa sociedade que, por sua vez, fosse detentora de património imobiliário.
Ora, a nova AT, embora possamos admitir que terá sido induzida em erro pela forma como foi apresentado o pedido de informação vinculativa (PIV 25060), considera que uma entrada em espécie, para constituição de sociedade, caso se verifiquem os restantes pressupostos, fica sujeita a IMT.
Relativamente à cisão, como decorre da própria natureza do processo de cisão-simples, a sua concretização não faz operar nenhuma transformação ao nível da titularidade económica sobre os bens, na medida em que os sócios, ainda que com constituição de nova sociedade, mantêm exatamente as mesmas participações e, desta feita, o mesmo predomínio no capital social.
Neste sentido, se decidiu no Acórdão do CAAD no Processo n.º 166/2016-T” “Se é esta a menos legis do preceito, se é este o fim que a norma prossegue, não faz sentido aplicá-la aos casos em que não há qualquer aquisição material ou de facto de património imobiliário (ainda que por via societária). Com efeito, se o sócio da sociedade cindida e da sociedade fruto da cisão são uma e a mesma entidade, não se verificou qualquer aquisição de partes sociais da qual algum dos sócios fique a dispor de, pelo menos, 75% do capital social”.
Também o momento da verificação da percentagem do limite de 50% do valor dos imóveis no total do ativo da sociedade suscita dúvidas, podendo questionar-se se releva o momento da venda ou a situação constante do último balanço aprovado.
Em situação similar já se pronunciou a AT, em sede de IRC, no caso de transmissão de participações sociais em sociedades detentoras de imóveis, tendo considerado que “A percentagem de 50% deverá ser aferida no momento em que ocorreu a transmissão das participações sociais” (PIV 15207), afigurando-se que, no caso do IMT, será igualmente no momento de aquisição das participações sociais.
No que respeita à afetação dos imóveis “a uma atividade de natureza agrícola, industrial ou comercial, excluindo a compra e venda de imóveis”, a interpretação também poderá suscitar algumas dúvidas.
A AT já se pronunciou no sentido de considerar que os prédios dados de arrendamento estavam afetos a uma atividade comercial (PIV 19470).
Com efeito, a norma parece excluir apenas a compra e venda de imóveis, pelo que tendo este sentido só estariam incluídos os prédios detidos decorrentes das atividades de compra e venda (CAE 68100) de bens imobiliários (no limite, admitimos que se incluam prédios detidos por sociedades e que, por qualquer circunstância, por exemplo, deixaram de ser utilizados, como será o caso de uma fábrica desativada).
A forma de cálculo da percentagem de 50% também não é clara.
Parece evidente que a norma se inspirou no n.º 4 do artigo 51.º-C do CIRC.
Aqui pretendeu-se excluir da aplicação do regime de participation exemption as mais-valias decorrentes da transmissão de participações sociais em sociedades cujo património seja constituído por imóveis “não afetos” a qualquer atividade ou adquiridos para venda, precisamente porque se está “indiretamente” a vender imóveis.
Não será já o caso da venda de uma participação social em sociedade que tenha uma fábrica em laboração e cujo imóvel represente mais de 50% do ativo, por se considerar que não se está a vender um imóvel, mas indiretamente uma unidade produtiva, em que o fator relevante não é o imóvel.
Ora, da leitura da norma do Código do IRC resulta claro que, para determinação da percentagem de 50%, no numerador deve constar o valor dos prédios afetos a uma atividade de compra e venda e, no denominador, o valor total do ativo.
E, será a relevância (mais de 50%) dos imóveis “não afetos” no total do balanço que determinará se estamos perante a transmissão de uma participação social ou, por via indireta, a transmissão de imóveis.
Face à suposta coerência do sistema jurídico, diríamos que o legislador do IMT se teria inspirado na norma do CIRC e fez a sua transposição para o IMT.
Com efeito, na alínea c) da regra 19.ª do n.º 4 do artigo 12.º do CIMT só concorrem para o valor tributável os imóveis que não se encontrem diretamente afetos a uma atividade de natureza agrícola, industrial ou comercial, e os que se encontrem afetos à atividade de compra e venda de imóveis.
Portanto, apenas os prédios ditos “não afetos” relevam para efeitos da sujeição a IMT.
E, a ser assim, não faz qualquer sentido haver uma percentagem de 50%, para a qual concorrem todos os imóveis (alínea i) que, cumulativamente está sujeita à condição de “tais imóveis não se encontrarem afetos a uma atividade”.
Vejamos um exemplo:
CIRC | CIMT | |
Total do ativo | 1 000 | 1 000 |
Imóvel afeto | 600 | 600 |
Imóvel não afeto | 100 | 100 |
Percentagem de imóveis | 10% | 70% |
É certo que, para efeitos de IMT, só o imóvel não afeto constitui base tributável, mas se o peso dos imóveis for determinado como no CIRC, não haverá lugar a sujeição a imposto, porque não se atinge a percentagem de 50%.
Já se relevarem todos os imóveis para determinação da percentagem, haverá sujeição a IMT, abrangendo apenas o imóvel não afeto.
Ora, sendo (era suposto) idêntica a rácio da norma, os imóveis que relevam para determinação da percentagem deviam ser apenas os não afetos.
O que significa que o legislador deveria ter fundido as 2 alíneas (i e ii) “O valor do ativo da sociedade resulte, direta ou indiretamente, em mais de 50 % por bens imóveis, que não se encontrem diretamente afetos a uma atividade de natureza agrícola, industrial ou comercial, excluindo a compra e venda de imóveis, situados em território nacional, atendendo ao valor de balanço ou, se superior, ao valor patrimonial tributário”;
Ao dividir tais alíneas gera dúvidas de interpretação.
Finalmente as aquisições sucessivas de participações sociais. Neste caso, não se trata de uma dúvida de interpretação, mas de uma estupefação. Estamos a referir-nos aos casos em que um sócio, na constituição da sociedade, passou a deter mais de 75% do capital social e, adquire posteriormente, outra participação social.
Tinha, por exemplo, 99,99% e adquiriu mais 0,01%. Diz-se que “A base tributável desta transmissão será o valor patrimonial tributável dos imóveis correspondente à quota maioritária (100%) ou o valor dos imóveis no balanço, se superior” (PIV 12514).
Supostamente houve uma aquisição originária da participação social de 99,99% (constituição da sociedade) e uma aquisição superveniente de 0,01%.
Nas aquisições sucessivas o imposto respeitante à nova transmissão será liquidado sobre a diferença de valores entre esta última e a primeira.
Na primeira, embora não tenha havido lugar a IMT, está determinado o valor patrimonial tributário dos imóveis correspondente à quota social maioritária (99,99%).
Então agora não devia ser (VPT imóveis atual x 100% – VPT imóveis inicial x 99,99%)?
De facto, esta norma está cheia de surpresas!