Artigo de opinião | Mais Habitação – um programa de preconceitos
24 Fev 2023

No passado dia 16 de fevereiro, o país assistiu atónito à apresentação de um desajeitado e precipitado pacote de medidas que, segundo António Costa, pretende resolver o problema da habitação em Portugal.
O programa «Mais Habitação» surge do nada, sem qualquer diagnóstico ou estratégia que o suporte, mais parecendo um truque do Primeiro-Ministro para desviar as atenções dos sucessivos casos e demissões que tem assolado o Governo, da incapacidade de promover reformas que promovam o desenvolvimento do país e da fraca execução dos pacotes financeiros dos fundos europeus, nomeadamente do PRR.
Marcado por preconceitos ideológicos, o programa encontra no turismo e, em particular, no alojamento local o bode expiatório para os problemas do setor. Vejamos:
– propõe a proibição da concessão de novas licenças de alojamento local, com exceção de licenças para alojamento rural numa faixa de concelhos do interior do país;
– prevê que as licenças de alojamento local sejam sujeitas a reavaliação em 2030, e, posteriormente, sujeitas a reavaliações periódicas;
– prevê a criação de uma contribuição extraordinária sobre todos os imóveis que se mantenham em regime de alojamento local; e
– sugere aos proprietários de fogos em regime de alojamento local que os transfiram para o regime de arrendamento habitacional até ao final de 2024, propondo que, até 2030, beneficiem de isenção de tributação em sede de IRS sobre os rendimentos prediais gerados por esses imóveis.
Um setor que cresceu e dinamizou o mercado do turismo em Portugal e provocou a reabilitação de milhares de edifícios, regenerando incontáveis ruas, bairros e centros históricos por esse país fora, é agora sujeito a um inaceitável «ultimato»: ou mudam para o arrendamento habitacional ou, em 2030, podem ficar sem negócio.
Um estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos sobre o mercado imobiliário em Portugal, publicado em abril de 2022, conclui que o alojamento local explica alguma variação de preços no mercado da habitação, mormente nas cidades de Lisboa e Porto, mas está longe de ser o grande fator. O mesmo estudo conclui que o problema da habitação é uma questão estrutural e radica em vários estrangulamentos que não podem ser escamoteados, como a incapacidade do Estado para criar respostas cabais para as carências habitacionais.
Mais, ao prever a proibição de novas licenças, o Governo, ainda que involuntariamente, vai criar um prémio para as existentes, valorizando o seu negócio, o que significa que a mudança para o arrendamento habitacional, mesmo que beneficiada fiscalmente, pode não compensar.
Outra medida polémica e controversa do programa proposto pelo Governo é a do arrendamento forçado da propriedade privada e que consiste na proposta de um regime de arrendamento compulsivo de habitações devolutas, em que o Estado assume a posição de arrendatário, para posterior subarrendamento a preço acessíveis.
O Governo sabe perfeitamente que o principal problema no mercado da habitação é a falta de imóveis para a procura existente e, em consequência deste desajustamento, o preço dos imóveis tem vindo a aumentar a uma velocidade muito superior à do poder de compra dos portugueses.
Desde que António Costa é Primeiro-Ministro venderam-se cerca de 1 milhão de casas e apenas foram construídas cerca de 90 mil casas. Ou seja, foi construída uma nova casa por cada 11 vendidas. E este é que é o verdadeiro problema.
Como o Governo não tem noção do que fazer para aumentar rapidamente o stock de casas disponíveis, faz pontaria para as cerca de 700 mil casas devolutas de propriedade privada que o INE diz existirem em Portugal. Não se sabe onde estão ou sequer qual a percentagem destas casas que estão em condições de ser habitadas, mas isso pouco importa para a narrativa deste plano.
O mesmo Estado que não sabe cuidar dos seus imóveis, que anda há anos a tentar inventariar o seu património devoluto, que falha na construção de imóveis do parque público para poder criar respostas a famílias economicamente mais vulneráveis, arroga-se no direito de tomar posse de imóveis de proprietários privados e arrendá-los a quem entende, nas condições que entende serem de mercado, porque, segundo a Ministra da Habitação, o direito à habitação sobrepõe-se ao direito à propriedade. Faria muito mais sentido o contrário: o Estado contratualizar com privados a colocação no mercado habitacional, a preços controlados, dos seus imóveis devolutos (em março de 2022 estavam identificados 717).
Obviamente que ninguém acredita que o Estado seja capaz de o fazer. Mas, independentemente dessa incapacidade de operacionalizar medidas, o que está em causa é uma violação clara de um direito fundamental da democracia e um atentado à economia de mercado e à iniciativa privada.
Trata-se, por isso, na minha opinião, de um conjunto de medidas injustas, erráticas, contraproducentes e que não produzirão qualquer efeito minimamente relevante no mercado da habitação. Antes pelo contrário, provocam medo e retiram confiança aos investidores privados nas instituições políticas. O Estado não pode estar constantemente a mudar as regras do jogo. O Governo já devia saber que a instabilidade legislativa e fiscal afasta o investimento e os investidores.
Mas, nem tudo é mau. Há medidas ajustadas e que são muito bem-vindas. É exemplo de uma boa medida o esforço de simplificação dos processos de licenciamento, nomeadamente a não sujeição a licenciamento municipal dos projetos de arquitetura e de especialidades, passando a haver um termo de responsabilidade dos projetistas, e a implementação de um modelo de penalização financeira das entidades públicas que não respeitem os prazos previstos na lei para a emissão de pareceres ou decisões obrigatórias no âmbito de processos de licenciamento, passando a correr juros de mora em benefício do promotor.
Sejamos realistas. O desajustamento no mercado habitacional, leia-se entre a oferta e a procura, deve-se, sobretudo, à incapacidade de promover nova construção. E os entraves mais relevantes à nova construção são, claramente, o licenciamento e a diminuição significativa na concessão de crédito da banca ao setor da construção civil que se verificou nos últimos 15 anos.
Assim, esta medida de simplificação conjugada com uma linha de crédito com condições verdadeiramente atrativas e um envelope financeiro que permita duplicar a exposição da banca ao setor da construção poderá criar as condições para que se inicie o processo de inversão deste desajustamento. Mas, sejamos francos, não será um processo fácil, nem será um processo rápido, porque, neste momento, as instituições políticas estão muito desgastadas e não conseguem mobilizar a sociedade e os privados para os grandes desafios do país e não há grande capacidade de produção disponível, a que acresce o problema da (falta de) mão de obra no setor da construção.
O programa «Mais Habitação» encontra-se em consulta pública até ao próximo dia 10 de março. Esperemos, por isso, que o Governo se deixe de demagogias ideológicas e se concentre nas propostas e medidas que sejam exequíveis e capazes de transformar o estado da arte.
– artigo de opinião do Diretor Geral da AEB, Rui Marques, no Jornal Correio do Minho