Artigo de opinião da CCP | O Direito, a doutrina, a jurisprudência e o bom senso
30 Jun 2021

“A galinha da vizinha é sempre melhor que a minha” é um velho ditado que reflete o sentimento de quem nunca está satisfeito com o que tem e acredita que, em particular o que vem do estrangeiro, é sempre melhor.
Confessamos que não nos sentimos particularmente afetados por este sentimento, mas não deixamos de procurar saber o que se passa lá fora, para conhecer, avaliar e comparar.
E foi o que fizemos a propósito de um recente Acórdão de um Tribunal superior que, sobre a falta de liquidação de IVA, no caso de uma aquisição intracomunitária, decidiu o seguinte:
“I. Nas transações intracomunitárias, no apuramento do IVA devido, é obrigatório para o contribuinte a liquidação do imposto devido nas aquisições de bens; mas já é facultativa a dedução desse mesmo imposto suportado nas aquisições;
II. E se o contribuinte não exercer esse direito à dedução do imposto suportado no apuramento do mesmo, não cabe à Administração Tributária oficiosamente, exercê-lo, por falta de normas atributivas dessa competência”.
Portanto, no âmbito de um procedimento de inspeção, se o contribuinte se esquecer de contabilizar a fatura de uma aquisição intracomunitária ou a contabilize sem promover a correspondente liquidação e dedução do IVA, a inspeção pode liquidar o imposto, sem que promova igualmente o direito à dedução.
Por uma questão de bom senso, dir-se-ia que, como se trata de uma mera operação de liquidação/dedução, de cuja omissão não resulta qualquer prejuízo para a Fazenda Pública, não seria exigível o imposto, sem prejuízo da aplicação de eventual coima, mas não tem sido esta a prática da administração fiscal, nem tão pouco o que a jurisprudência entendeu neste caso.
Procurámos saber como é que situações análogas são tratadas noutros países, já que, sendo o IVA um imposto harmonizado, tendo como referência comum a Diretiva IVA, e competindo a qualquer inspeção tributária, no âmbito do procedimento de inspeção, a procura da verdade material, seria expectável que a mesma situação merecesse tratamento uniforme nos diversos Estados membros.
Ora, em França, numa das suas “Circulares” a respetiva administração fiscal entende que “Toutefois, en cas de rappel de la taxe afférente à des acquisitions intracommunautaires non déclarée, la taxe correspondante est déduite, à l’initiative de l’administration, dès la proposition de rectifications, indépendamment de toute appréciation sur la bonne foi du redevable et sous réserve des limitations et exclusions du droit commun”.
Portanto, aparentemente, mesmo sem normas atributivas dessa competência, a administração fiscal francesa promove oficiosamente o direito à dedução do IVA.
Em Espanha, a jurisprudência também entende que a inspeção deve promover oficiosamente o exercício desse direito:
“Cuando la conducta del sujeto pasivo no tiende al abuso de la norma o al fraude, siendo razonable en derecho, el órgano gestor debe atender a todos los componentes, IVA devengado e IVA soportado deducible , que debería haber constado en la práctica de la obligada autoliquidación, ya que el impedimento a deducir generaría una quiebra del principio de neutralidad, no produciéndose un perjuicio a la Hacienda Pública en cuanto que si bien se devenga el impuesto, también el sujeto pasivo tiene el derecho a deducir, pudiendo vulnerarse el objetivo básico que con el derecho a la deducción pretende alcanzarse, que no es otro que el de garantizar la plena neutralidade del IVA”.
Com efeito, no âmbito do IVA tem vindo a consolidar-se uma linha jurisprudencial que defende a regularização integral do IVA nos procedimentos de inspeção e considera que “cuando un contribuyente se ve sometido a una comprobación y se procede a la regularización mediante la oportuna liquidación ha de atenderse a todos los componentes que conforman el ámbito material sobre el que se desarrolla la actuación inspectora, procediendo la aplicación del principio de la íntegra regularización de la situación tributaria, alcanzando tanto a los aspectos positivos como a los negativos para el obligado tributário”.
Portanto, se o contribuinte português tivesse a administração fiscal francesa ou os tribunais espanhóis não seria chamado a pagar o imposto, porque na correção efetuada seria tido em conta o imposto dedutível.
Não queremos aqui teorizar sobre quem faz uma boa aplicação do direito, porque numa situação destas qualquer bonus pater famílias deve entender que se trata de uma questão de bom senso.
E, a sua falta apenas gera contencioso e é suscetível de redundar em profundas injustiças fiscais, como acontece também noutros casos.
Referimo-nos ao regime de inversão do sujeito passivo, em particular, quando seja adquirente de serviços de construção civil.
A administração fiscal faz uma interpretação lata do conceito de serviço de construção civil, nele incluindo serviços que o comum dos mortais não consideraria como tal, como é o caso da montagem de sistemas de alarmes ou de sistemas de rega.
Ora, nos termos do n.º 8 do artigo 19.º do CIVA não confere direito à dedução o imposto mencionado em fatura nos casos em que a obrigação de liquidação e pagamento do imposto compete ao adquirente dos bens e serviços.
E, como a delimitação do conceito de serviços de construção civil não é inequívoca, assistimos a autênticos conflitos entre empresas, porque na dúvida, nem mesmo que seja um mero serviço de espetar um prego na parede, o adquirente prefere aplicar o regime de inversão não vá a administração fiscal considerar que se trata de um serviço de construção civil, o que implicaria o corte do direito à dedução do imposto já pago ao fornecedor e entregue por este nos Cofres do Estado.
E, quando tal acontece, o Estado arrecada duas vezes o mesmo imposto.
É certo que o TJUE já se pronunciou sobre a impossibilidade de dedução do IVA suportado indevidamente, mas também é certo que admitindo a falta de previsão na Diretiva da recuperação do imposto indevidamente pago, referiu que compete ao ordenamento jurídico interno de cada Estado membro regulamentar as condições em que pode ser recuperado o imposto.
E aqui exigir-se-ia bom senso, que talvez falte quando se obriga a emitir faturas retificativas, novas declarações periódicas e devolução do imposto ao cliente …quando o imposto devido pela operação já está entregue nos Cofres do Estado.
O mesmo se diga quanto às exigências formais das faturas em particular a descrição dos serviços prestados. Continuam a verificar-se situações em que a administração fiscal considera que das faturas não consta a “quantidade e denominação usual dos serviços”, e corta o direito à dedução.
Não importa que o imposto tenha sido liquidado à taxa normal, o que afasta qualquer dúvida quanto à utilização de uma taxa que lese os interesses do Estado, nem que o fornecedor tenha entregado o imposto nos Cofres do Estado, afastando qualquer dúvida quanto a uma eventual situação de fraude.
Ora, a eventual insuficiência da descrição dos serviços prestados em nada prejudica o direito à dedução, constituindo tal procedimento mais um injustificado corte na cadeia de liquidação e dedução que caracteriza um regime de imposto sobre o valor acrescentado.
É assim que a administração fiscal francesa entende já que considera “Cela étant, il est précisé que la seule omission ou inexactitude de l’une des mentions obligatoires n’entraîne pas nécessairement la remise en cause de la validité d’une facture pour l’exercice des droits à déduction de la taxe dès lors que l’opération est justifiée dans sa réalité et qu’elle satisfait par ailleurs aux autres conditions posées pour l’exercice du droit à déduction”.
Mas para a administração fiscal portuguesa basta como fundamento a falta de quantificação/descrição usual dos serviços prestados, não sendo aceites descrições do tipo “comissão por serviços de gestão”, “serviços prestados de cofragem efetuados na obra “x””, “ serviços de arrumação e carregamento de materiais” ou “serviço final de pedreiro na obra “y””.
E o resultado desta atuação são verdadeiras injustiças pela eliminação do direito à dedução de IVA pago e relativo a efetivas prestações de serviços.
Por isso, é urgente que a AT defina claramente como devem ser “quantificados” os serviços e qual a sua “descrição usual” para que o pedreiro saiba como deve descrever os serviços prestados, para não falar do psiquiatra ou do ginecologista (ou então confirmar se são suficientes descrições como “serviços de pedreiro”, “consulta de psiquiatria” ou “consulta de ginecologia”). É preciso saber se o pedreiro tem ou não de mencionar na fatura que assentou “x” tijolos, rebocou “y” metros quadrados de parede, carregou com “z” baldes de cimento e trabalhou “a” horas, na data “b” e na obra “c”.
Se a resposta for afirmativa, parece que quando tiverem de ser solicitados os serviços do psiquiatra, também naturalmente deve ser pedida uma fatura com o detalhe do estado mental e dos tratamentos efetuados ao paciente.
Que o farol do bom senso guie os decisores e se caminhe para uma aplicação mais justa do imposto!
CCP – Confederação do Comércio e Serviços de Portugal